REVISTA CH 259 :: MAIO DE 2009 :: SOBRE HUMANOS
Renato Lessa analisa o chocante episódio de violência contra passageiros em estação de trem carioca
Nas lições sobre figuras de linguagem consta, em lugar nobre, a da metonímia, que proporciona uma série de recursos linguísticos, sem os quais nossa fala cotidiana – para não dizer literária – seria virtualmente impossível. Um de seus atributos é a possibilidade de aludir a uma totalidade por meio da menção a apenas uma de suas partes. Na expressão “a mão que empurra”, usada para descrever a força que precipitou alguém em um abismo, o termo ‘mão’ substitui, na verdade, o agente responsável pela gentileza. Metonímias, contudo, não são apenas figuras de linguagem. Podem ser, por assim dizer, figuras da vida. Se aplicarmos a elas uma de suas primas-irmãs, a celebérrima metáfora, podemos dizer, metaforicamente, que há ‘metonímias sociais’. Fatos e fenômenos sociais com precipitação instantânea sobre a vida cotidiana podem, para além de seus efeitos imediatos, ser vistos como indicadores de configurações mais amplas. A literatura dos sobreviventes dos campos de extermínio nazistas utiliza com frequência esse poderoso recurso estilístico. É o caso pungente descrito no clássico livro É isto um homem? pelo escritor italiano Primo Levi (1919-1987), sobrevivente de Auschwitz: roupas infantis, penduradas por mães zelosas para secar na cerca de arame farpado do campo de concentração, na véspera da partida para o campo de extermínio. A visão do detalhe evoca a enormidade do horror do Holocausto de modo muito mais empático que qualquer enumeração estatística dos mortos por país, idade ou gênero.
(assitam no sites as imagens http://cienciahoje.uol.com.br/143074)
A cidade do Rio de Janeiro testemunhou na manhã de 16 de abril último um evento metonímico. Em Madureira, uma estação da Zona Norte carioca, ‘seguranças’ uniformizados e contratados pela empresa concessionária dos serviços de transporte ferroviário foram flagrados por uma câmera de televisão a surrar passageiros com socos, pontapés e golpes de um chicote improvisado. A cena foi placidamente assistida por um policial militar, cujo comportamento evidenciava enorme familiaridade com o que acontecia. As cenas de brutalidade são chocantes. Sob o pretexto de fazer com que as pessoas entrassem nos vagões, para permitir a partida da composição, as supostas ‘forças da ordem’ agrediram fisicamente os passageiros. Como de hábito, a busca de elucidação do fato seguiu o roteiro usual: determinar os responsáveis e aplicar as punições exemplares de praxe. Se depender da empresa, vai sobrar para os ‘seguranças’ flagrados. Representantes da concessionária, ouvidos, declararam-se chocados com o comportamento de seus empregados, segundo eles, incompatível com as normas éticas internas da firma. Investigar quem são os perpetradores é importante, mas talvez não seja o que mais precisamos. É fundamental, além disso, ouvir os vitimados. Nesse particular, os relatos são elucidativos. A violência acidentalmente registrada pela câmera – uma espécie de ombudsman errático dos desvalidos – é diária e habitual. Os maus-tratos aos usuários são frequentes, com uso regular da violência. É o velho e renitente hábito do uso da força ilegítima contra os segmentos populares que, mais uma vez, se manifesta. É como se uma cultura de castigo seletivo estivesse inscrita em nosso DNA civilizatório, a dizer que os pobres são um contingente passível de receber castigo físico. São eles as vítimas preferenciais da truculência policial e os que frequentam com mais assiduidade as gavetas dos necrotérios, sob a cobertura legal dos famigerados autos de resistência (a ‘desculpa’ oficial para a matança efetuada por agentes da ordem). Há os que dizem que a democracia está firmemente consolidada no país. Apegam-se a dados que indicam o funcionamento pleno das instituições. Encantados, dedicam-se a descrevê-las e têm a pretensão de corrigir, por imperitas, as impressões em contrário. No entanto, a sensação é bem outra para os que têm seus corpos e suas vidas à disposição do castigo físico contumaz. É fundamental, sempre, escutá-los. Renato Lessa Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, da Universidade Candido Mendes, e Universidade Federal Fluminense rlessa@iuperj.br
0 comentários:
Postar um comentário
Seu comentário é importante!