SÚMULA
Pernambuco: o SUS cumpre seu dever
Referência em atendimento à mulher vítima de violência sexual, o Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), em Recife, esteve em março no noticiário brasileiro e internacional após aborto legal, no dia 4, em menina de 9 anos grávida de 4 meses de gêmeos, estuprada mais de 15 vezes pelo padrasto de 23 anos. O diretor-médico do Cisam, Sérgio Cabral, garantiu que o procedimento foi seguro, com dose mínima de misoprostol. "Ela está consciente, conversando e sempre brincando, agarrada a ursinhos de pelúcia", informou, após o aborto. "Foi analgesiada e sentiu o mínimo de dor".
Os fetos foram encaminhados a exame de DNA, que comprovará a autoria do crime de estupro pelo padrasto, detido no Presídio de Pesqueira. Apena é de 6 a 10 anos, podendo ser agravada pelo crime de pedofilia.
A imprensa deu enorme destaque à reação do arcebispo de Olinda e Recife, José Cardoso Sobrinho, que excomungou os responsáveis pelo aborto: publicou até trechos do direito canônico, sem valor algum nos Estados laicos, para justificar a posição da igreja. "Graças a Deus estou no rol dos excomungados", reagiu Fátima Maia, diretora-geral do Centro: a criança — 33 quilos e 1,36m — poderia ter ruptura de útero, hemorragia e bebês prematuros, informou, além do risco de diabetes, hipertensão, eclampsia e, também, de se tornar estéril. O aborto no Brasil é legal apenas para vítimas de estupro e em risco de vida, e assim mesmo até a 20ª semana. Amenina se enquadrava nas duas situações. "O Cisam fez e vai continuar fazendo, estamos preparados, qualificados e referenciados para esse tipo de atendimento há 16 anos", acrescentou Fátima.
O governo brasileiro defendeu o Cisam. Para o ministro Temporão, a reação da igreja foi "lamentável" e "radical". Para Carlos Minc, do Meio Ambiente, a igreja "criminalizou a vítima". O presidente Lula resumiu: "Neste aspecto, a medicina está mais correta do que a igreja", disse. "Nenhuma lei dos homens deve contrariar a lei de Deus", insistiu o arcebispo, que não excomungou o estuprador. "O estupro é um crime gravíssimo, mas não mais grave que o aborto", disse ele.
Aprópria CNBB, em nota, não manifestou apoio ao arcebispo. "Repudiamos veementemente este ato insano e defendemos a rigorosa apuração dos fatos, e que o culpado seja devidamente punido, de acordo com a Justiça. Lamentamos que não seja um caso isolado. Preocupa-nos o crescente número de atentados à vida de crianças, vítimas de abuso sexual. AIgreja se faz solidária com esta e todas as crianças vítimas de tamanha brutalidade, bem como com as famílias. AIgreja, em fidelidade ao Evangelho, se coloca sempre a favor da vida, numa condenação inequívoca de toda violência que fere a dignidade da pessoa humana", dizia o texto.
AONG Católicas pelo Direito de Decidir também reagiu em nota: "Seria possível imaginarmos o que Jesus Cristo diria a essa menina? Seria ele intolerante, inflexível e cruel a ponto de dizer a ela que sua vida não tem valor? Ou ele a acolheria gentilmente, procuraria ouvir sua dor e a acalentaria em seu sofrimento?" O senador católico Pedro Simon (PMDB-RS), da Ordem Franciscana Secular, foi seco: "Com todo o respeito ao arcebispo, ele perdeu a oportunidade de ficar calado". O ex-prefeito de Recife João Paulo (PT) foi além: "Não vemos uma reação mais radical dessas em relação a padres pedófilos, né?"
Acriança e a mãe, de 39 anos, vivem agora numa casa-abrigo na Região Metropolitana de Recife, acolhidas pelo Programa de Proteção a Vítimas de Abuso Sexual da Secretaria Estadual da Mulher. "Estamos comprometidos a contribuir com a reestruração desse núcleo familiar", disse a secretária, Cristina Buarque. Sérgio Cabral, do Cisam, frisou não ter problema de consciência. "Estou cumprindo um trabalho perante a população pobre de Pernambuco, que só tem o SUS para resolver seus problemas".
Para a socióloga Suely Deslandes (IFF/Fiocruz), que no momento coordena trabalho do Unicef sobre indicadores de violência doméstica e familiar, a grande repercussão do episódio acende um debate necessário. "Uma das características da violência intrafamiliar é o muro de silêncio: a família tem vergonha ou medo de denunciar", disse ela à Radis. "Quando acontece um caso como o de Pernambuco, o profissional que está na ponta do atendimento, no serviço social ou de saúde, tem papel fundamental e precisa saber como tratar do problema". Na opinião de Suely, a reação do ministro Temporão e do presidente Lula em defesa dos profissionais do Cisam "foi extremamente oportuna: ambos demarcaram a defesa da garantia dos direitos da vítima de violência sexual".
Suely lembra que tem quase 11 anos a Norma Técnica "Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes" (9/11/1998), assinada pelo então ministro José Serra, na qual o Ministério da Saúde orienta o profissional para que dê atendimento humanizado às vítimas. Com várias atualizações, a mais recente delas — do ministro Humberto Costa em 10/3/2005 — aboliu a exigência de apresentação pela vítima do Boletim de Ocorrência como pré-requisito para a interrupção da gravidez resultante de estupro. "Deve-se orientá-la a tomar as providências policiais e judiciais cabíveis, mas, caso ela não o faça, não lhe pode ser negado o abortamento", diz trecho do documento. A realidade, porém, é outra. Pesquisa Ipas/MSmostrou que a resistência das equipes médicas são os grandes obstáculos das vítimas de estupro que engravidam no país (ver, no Radis na Rede, a matéria "Aduríssima saga do aborto legal", que encabeça uma série de textos sobre o assunto: www4.ensp.fiocruz.br/radis/rede/160.html).
Suely lembra também que, pelo atual Código de Ética Médica, o profissional da saúde pode até alegar "objeção de consciência" para não realizar o aborto. "Mas o gestor da unidade é obrigado a providenciar o procedimento", ressalva. (Ver íntegra da Norma Técnica/2005 em www4.ensp.fiocruz.br/radis/80/web-01.html)
Matéria extraída da RADIS COMUNICAÇÃO EM SAUDE Nº 80 - Abril de 2009 - págs. 5 e 6
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