A face traumática da violência O Brasil está prestes a alcançar uma estatística tétrica: em 2010, o País completará um ciclo de 20 anos com um saldo de mais de 2,2 milhões de mortes provocadas por armas de fogo e acidentes de trânsito, a maioria envolvendo jovens de até 30 anos.
Por Giuliano Agmont
O trânsito flui bem na Rodovia Presidente Dutra. Depois de um fim de semana nas areias do Rio de Janeiro, o casal retorna a São Paulo, de carro. O rapaz dirige o veículo enquanto a moça dorme no banco do passageiro com o encosto reclinado e o cinto de segurança afivelado. Já são mais de quatro horas de viagem. A noite é agradável e as condições de tráfego na BR-116 são boas. Infelizmente, boas até demais. A monotonia da estrada e o cansaço acumulado de um dia de praia regado a bebidas alcoólicas começam a fazer efeito. Sem perceber, o condutor rateia ao volante e vai fechando os olhos até ser completamente vencido pelo sono. A estudante de Direito nem percebe a titubeada do namorado e o acidente é inevitável.
O automóvel capota sem colidir com qualquer outro veículo. A violência do choque faz com que o cinto imponha alta pressão sobre o pescoço da ocupante. A equipe de resgate não demora a aparecer e a leva para um hospital da Zona Leste da capital paulista. Os médicos realizam um exame clínico e constatam que a paciente está sem reflexo e não movimenta pernas e braços. Ela sofreu uma grave fraturaluxação nas vértebras C5 e C6 da coluna cervical e trauma medular. Mais que depressa, é encaminhada à unidade de trauma raquimedular do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP). Lá os especialistas fazem a estabilização cirúrgica por via anterior, 48 horas após o acidente. Sem sucesso: a intervenção não ajudou na reabilitação da lesão neurológica e, aos 24 anos de idade, a garota está tetraplégica.
A história dessa jovem estudante é mais uma entre milhares que estão associadas ao traumatismo, a terceira principal causa de morte no Brasil, atrás apenas de doenças cardiovasculares e tumores (veja tabela às páginas 48 e 49). Hoje, passados mais de dez anos da tragédia e superadas complicações como trombose venosa, sangramento renal, infecções urinárias e espasticidade grave, a menina depende tanto de cadeira de rodas quanto de cuidadores. Movimenta os ombros, flexiona os cotovelos sem estendê-los, ouve bem, enxerga, fala e até dirige. A fisioterapia mantém ativas as partes paralisadas, uma sonda esvazia a bexiga e o intestino, além de outros cuidados permanentes para evitar infecções. A jovem chegou a concluir o curso de Direito e participa hoje de campanhas de prevenção a acidentes automobilísticos e demais eventos causadores de traumas, que já atingiram patamares pandêmicos no País - e no mundo.
Deserções no front
Os números brasileiros vinculados ao trauma realmente chocam. Só em 2008, o Sistema Único de Saúde (SUS) registrou mais de 760 mil internações enquadradas nessa categoria de ferimento, que é tratada nas estatísticas como lesões por causas externas (veja tabela às páginas 50 e 51). Dessas ocorrências, é certo que muitas tiveram como desfecho óbitos ou sequelas permanentes e outras tantas levaram as vítimas à invalidez temporária. "Embora faltem estudos mais aprofundados, estima-se que acidentes e agressões produzam no mínimo 600 mil feridos por ano no País, dos quais 12 mil ficam incapacitados", calcula a médica fisiatra Júlia Greve, coordenadora do Laboratório de Movimento do Instituto de Ortopedia e Traumatologia do HC-FMUSP. "São pelo menos três a quatro feridos para cada morte provocada por agentes externos, além da alta prevalência de estresse pós-traumático desenvolvido por pessoas relacionadas indiretamente às vítimas da violência, como é o caso de policiais, socorristas e transeuntes." Se esses dados de morbidade assustam, os de mortalidade são ainda mais aterradores. Segundo as estatísticas mais recentes divulgadas pelo Ministério da Saúde, o número de óbitos por causas externas chegou a quase 130 mil no ano de 2006 (veja dados na tabela à página 48), o equivalente a 12,1% do total de fatalidades.
O espantoso é que 70% a 80% dessas mortes foram provocadas por homicídios, colisões de veículos, quedas de motocicleta e atropelamentos. E o pior: três de cada cinco vítimas têm menos de 39 anos. "São números de guerra", resume o historiador e pesquisador médico Luís Mir, que é um dos fundadores do Projeto Trauma, um foro de discussão sobre o atendimento ao trauma criado em 2004 com a participação de seis sociedades médicas e cerca de 30 mil médicos de emergências no País inteiro. "O problema é que baleados, esfaqueados, atropelados, queimados e traumatizados em geral, embora sejam minoria entre os pacientes que dão entrada em prontos-socorros, acabam consumindo mais de 60% dos recursos destinados ao atendimento hospitalar. Isso significa que os custos das vítimas da violência inviabilizam o sistema de saúde do País." Na prática, o que acontece é que os politraumatizados têm prioridade na fila de atendimento e quem já estava esperando acaba não sendo chamado ou, então, é obrigado a esperar por muitas horas. Para complicar, os recursos disponíveis para o tratamento adequado das vítimas da violência também são insuficientes, forçando os médicos a fazer apenas o possível e não o necessário, já que estão desaparelhados e indevidamente treinados.
Essa situação deixa o sistema de saúde no limite do colapso. "O custo da violência é impagável, o atendimento da população continua precário e os médicos estão literalmente exaustos", constata Luís Mir. "Não por acaso, o índice de deserção dos médicos de emergência chega a 40%. São jovens e é insuportável para eles lidar com o desprezo do Estado pela vida e a banalização da violência pela sociedade." De fato, a resignação dos médicos que atuam diretamente no atendimento às vítimas do trauma é latente, como se nota no discurso de um de seus principais expoentes. "Já cansei de ir a Brasília e ver que nada acontece. Apenas criam comissões para discutir o assunto. Mas não há mais o que discutir: nossos jovens estão morrendo e quem está matando não é a fome, são os carros, as motos e as armas de fogo", opina Mario Mantovani, professor titular e chefe da disciplina de Cirurgia do Trauma do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-Unicamp) e presidente da Sociedade Brasileira de Atendimento Integrado ao Traumatizado (SBAIT). "Mesmo ganhando mal, trabalhando em três empregos, cumprindo dois a três plantões por semana, os médicos tentam fazer sua parte. Mas nem sempre isso é possível: o cansaço, o desespero e o despreparo fatalmente resultam em negligências, imprudências e imperícias."
Controle de danos
Apesar das condições adversas, Dr. Mantovani reconhece que muita coisa mudou para melhor nos últimos 20 anos nessa área. Não nas estatísticas, que continuam trágicas, mas no avanço do conhecimento terapêutico e na capacidade da medicina de salvar vidas. Uma das novidades é a adoção do chamado "controle de danos". Criado pela Marinha dos Estados Unidos, o procedimento prevê a aplicação de cuidados mínimos necessários com o objetivo de apenas impedir a morte do traumatizado mais grave. Assim, a cirurgia definitiva só é feita no dia seguinte, depois de melhorar as condições gerais do paciente. "É uma maneira bastante eficiente de evitar que a pessoa tenha de suportar o trauma físico, a anestesia e a cirurgia em um intervalo curto de tempo, situação que aumenta muito o risco de morte", explica Mantovani. "O que fazemos é cuidar da respiração, repor sangue, diminuir a acidose metabólica, aquecer o corpo e evitar distúrbios de coagulação. Se o quadro do paciente não estiver estável, ele é encaminhado à UTI."
Outro método que tem sido enaltecido por cirurgiões de trauma é o tratamento não cirúrgico. "Hoje, com o avanço do exame de imagem, é possível deixar que a hemorragia causada por uma lesão hepática em um paciente estável, por exemplo, estanque-se por si só", revela o médico Mantovani. "Essa técnica é especialmente vantajosa porque, ao deixar de operar, o médico não cria outro trauma no paciente, reduz o tempo de internação, diminui o risco de infecções hospitalares e garante gastos menores com o tratamento. Porém, os protocolos para esse tipo de intervenção devem ser observados de maneira bastante minuciosa." As mortes violentas seguem um padrão no Brasil. Segundo o professor Mantovani, 50% delas acontecem nos primeiros minutos após a lesão, 30% ocorrem nas primeiras horas depois do trauma e 20% são registradas nas semanas seguintes ao acidente ou à agressão.
Por isso o pronto atendimento, tanto pré-hospitalar quanto hospitalar, pode ser o fator decisivo entre a vida e a morte de uma pessoa. "Para sobreviver, esse paciente tem uma hora para receber os primeiros socorros, ser transportado até o hospital e passar por um tratamento inicial adequado. É a chamada golden hour", diz Mantovani. "Com um atendimento pré-hospitalar adequado, é possível reduzir em 30% o índice de mortalidade por trauma e proporcionar um ganho de 50% em qualidade de vida aos sobreviventes." Nesse sentido, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) representou um passo importante para o combate ao trauma no Brasil. Contudo, embora o programa garanta um resgate realmente rápido, os especialistas acreditam que falte capacitação para os gestores do sistema, além de infraestrutura hospitalar. "Não adianta só tirar o traumatizado da frente da sociedade. É preciso que a equipe de resgate leve o paciente na hora certa para o médico certo, no hospital certo."
Depois do atendimento pré-hospitalar, o padrão ouro na assistência e no tratamento inicial é o procedimento recomendado pelo Colégio Americano de Cirurgiões, o chamado Advanced Trauma Life Support (ATLS), ou Suporte Avançado de Vida para o Traumatizado (veja quadro às páginas 46 e 47). "É uma metodologia que pode salvar 50% das vítimas ou mais", garante o ortopedista Marcos Musafir, do Departamento de Violência e Incapacidade da Organização Mundial da Saúde (OMS), em Genebra. "O ATLS estabelece protocolos com base em métodos consagrados em 105 países com a intenção de definir a ordem de prioridade de soluções de problemas que colocam a vida em risco. Todos os plantonistas de emergências e os de centros de trauma devem fazer esse curso."
Vítimas da alcoolemia
Além do atendimento pré-hospitalar e hospitalar, o combate ao trauma prevê outras duas etapas bastante negligenciadas no Brasil: a reabilitação e a prevenção. São fases importantes para garantir a cadeia de sobrevida ao trauma, mas pouco se faz a respeito. O melhor exemplo disso é a alcoolemia. A equipe de médicos de emergência da Unicamp realizou no ano passado um levantamento aleatório com os 100 primeiros pacientes que deram entrada no pronto-socorro por trauma. Eram pessoas de 14 a 90 anos. O resultado surpreende: 38% das vítimas apresentavam alto índice de alcoolismo, e a maior parte delas estava dirigindo. Outro trabalho realizado pela Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia (SBOT) em 2007 mostrou que mais de 40% de jovens universitários de São Paulo e do Rio de Janeiro costumam dirigir depois de consumir bebidas alcoólicas - a entidade ouviu cerca de mil estudantes de 18 a 30 anos de oito faculdades. A pesquisa também revelou que praticamente nove de cada dez entrevistados não se preocupam se o motorista do grupo está ou não alcoolizado. Acredita-se que o álcool esteja relacionado com 66% dos acidentes de trânsito. "As novas leis, as campanhas e as fiscalizações com bafômetros surtiram efeito, mas as blitze viraram fontes de corrupção policial e, aos poucos, as pessoas estão voltando a dirigir sob efeito de bebidas alcoólicas", denuncia Luís Mir, que é também autor do livro Guerra Civil - Estado e Trauma.
A prevenção contra o trauma foi a base da campanha deflagrada pela OMS em 2002. De acordo com a entidade, as lesões por causas externas representam o terceiro principal motivo de morte no planeta e o primeiro em sequelas. No Brasil, o trauma já é a primeira causa de morte entre os jovens de 14 a 29 anos. Em 2010, o País terá alcançado uma marca trágica, conforme dados do Ministério da Saúde: completará um ciclo de duas décadas com um saldo de mais de 2,2 milhões de mortes por causas externas, sendo um milhão somente por armas de fogo. "Qualquer solução do problema passa pelo esvaziamento dos prontos-socorros. Os médicos precisam voltar a atender pacientes e não vítimas da violência", defende Luís Mir.
Custos da violência
"A OMS trabalha com a perspectiva de reduzir progressivamente em 12% o número anual de mortes por causas externas no mundo. Além disso, defende a criação de melhores condições de tratamento para evitar pelo menos dois milhões de óbitos por trauma a cada ano", informa o médico. O historiador Luís Mir vai além. "Cerca de 40% dos eventos criminosos têm participação direta ou indireta da polícia. É o contrabando de armas, a receptação de carga, o tráfico de drogas, a exploração do transporte clandestino, a oferta de serviços ilegais, a grilagem urbana, o contrabando, a pirataria", elenca o pesquisador. "Além disso, investe-se muito mais em repressão do que em prevenção e coerção." Em 2004, o custo da violência chegou a 92,2 bilhões de reais, o que representou 5,09% do produto interno bruto (PIB) ou um valor per capita de 514,40 reais. É o que revelou um trabalho do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de 2007. O estudo levou em conta os gastos dos setores público (segurança, sistema prisional e saúde) e privado (perda de capital humano e segurança privada) e o custo social (seguros - transferências por roubos e furtos).
E o que os autores destacam nas considerações finais é que o impacto da perda de capital humano nos custos da violência é mais baixo no Brasil do que em países desenvolvidos, o que poderia causar surpresa, tendo em vista os quase 50 mil assassinatos por ano no País. "Todavia", escrevem os pesquisadores, "a diferença de grandeza relativa nesse indicador deve-se ao fato de que o perfi l das vítimas de homicídio no Brasil é prioritariamente de jovens com baixa educação. Ou seja, a desigualdade da dinâmica criminal no Brasil replica a desigualdade de renda. Alternativamente, a estimativa de 2,15 milhões de vidas prematuramente perdidas em função da violência deixa clara a magnitude do problema, indicando serem as vítimas jovens, cada vez mais".
A fisiatra Júlia Greve, que continua atendendo a paciente do começo desta matéria, acredita que a grande pergunta que se deve fazer neste momento é: queremos segurança ou proteção? Talvez essa seja uma questão realmente capital. "Se aceitarmos a violência do jeito que está e exigirmos das autoridades apenas que impeçam os jovens delinquentes de agredirem os cidadãos de bem com suas armas e seus veículos, a tendência é de que as coisas só piorem", argumenta a médica. "O armistício passa por um novo contrato social. É preciso rediscutir a riqueza do País. Hoje, os deserdados estão disputando fatias do bolo à bala. E o Estado só protege 20% da população.
Para o resto das pessoas, vale a 'lei da selva'. A mensagem é: defendam-se como puderem, com as armas que tiverem", sustenta Luís Mir. Enquanto nada acontecer, a montanha de corpos continuará a crescer e o rio de sangue só ficará mais caudaloso. O número de paraplégicos, tetraplégicos, amputados, fraturados, baleados, incapacitados, cegos, mudos, surdos e portadores de outras incapacidades também subirá. E os custos continua rão impagáveis, comprometendo todo o resto do sistema de saúde. "O tipo de violência muda conforme o tempo passa, mas a ação preventiva deve ser contínua. Hoje, o foco das campanhas deve ser os projéteis de armas de fogo, especialmente os de alta velocidade, e o trânsito, com destaque para as motocicletas e os atropelamentos", defende o professor Mario Mantovani.
Fontes
Cerqueira DRC, Carvalho AXY, Lobão WJA, Rodrigues
RI. Análise dos custos e consequências da violência
no Brasil. Brasília: Ipea, 2007.
Mir L. Guerra Civil - Estado e trauma. São Paulo: Geração
Editorial, 2004.
Artigo extraído do site da Revista Pesquisa Médica. O original com as fotos da matéria encontram-se no site da Revista -
http://www.revistapesquisamedica.com.br/PORTAL/textos.asp?codigo=11586
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