EntrevistaMARGARETH DALCOLMO
“Não existe mau paciente, só serviço ineficiente”
Adriano De Lavor e Karine Thames de Menezes*
O Brasil registra cerca de 85 mil novos casos de tuberculose por ano, e o Estado do Rio tem as piores estatísticas: são 16 mil novos casos anuais, que chegam a 20 mil se somados os não-curados do ano anterior. De 30% a 33% das mortes por tuberculose — a maior taxa de mortalidade do país — ocorrem na emergência dos hospitais terciários, o que revela a baixa eficácia da rede básica no diagnóstico e no tratamento da doença.
No bairro de Curicica, Zona Oeste do Rio de Janeiro, fica o Centro de Referência Hélio Fraga, transferido em abril à Fiocruz. Sua experiência de mais de 20 anos em pneumologia sanitária permitiu que, a partir de 1995, desenvolvesse protocolo clínico para validação de um tratamento das formas multirresistentes da tuberculose (TBMR) — quando o paciente não responde a remédios como rifampicina e isoniazida. O objetivo: dar resposta aos chamados casos crônicos da doença.
Seu Ambulatório de Tuberculose, que completou 10 anos em 2007, opera com equipes multidisciplinares no atendimento dos casos mais graves, enviados pela rede do SUS: já chegam a quatro mil os brasileiros atendidos. Além disso, presta consultoria em micobacterioses, pesquisa clínica e operacional, forma recursos humanos e promove vigilância epidemiológica dos casos de TBMR, incluindo gerenciamento e provisão dos medicamentos padronizados para todo o país.
Para a pneumologista Margareth Dalcolmo, fundadora e coordenadora técnica do ambulatório, a mudança para a Fiocruz favorecerá o desenvolvimento de trabalhos de referência, a participação em ensaios clínicos internacionais com novos fármacos, uma aproximação maior do serviço com a produção acadêmica — tudo para que o Brasil reaja mais velozmente às principais questões do programa de controle da tuberculose. “Considero inadmissível que ainda morram cerca de seis mil brasileiros por ano de tuberculose”, diz Margareth, que nesta entrevista à Radis faz balanço do estágio da doença no país, analisa os desafios para seu controle e enumera algumas recomendações úteis para os profissionais que lidam com pacientes de tuberculose.
“Não existe paciente difícil de ser tratado, como um fenômeno social isolado, existe serviço ineficiente”, afirma. Mas o desafio é grande, a começar pelo ensino da tuberculose, que é precário. “Há cursos médicos que em seis anos dão duas horas de tuberculose”. Profissionais do SUS e de universidades já fazem estágio no centro, que se prepara para treinar, neste ano, grupos da organização Médicos Sem Fronteiras de partida para regiões de conflito.
“Não existe mau paciente, só serviço ineficiente”
Adriano De Lavor e Karine Thames de Menezes*
O Brasil registra cerca de 85 mil novos casos de tuberculose por ano, e o Estado do Rio tem as piores estatísticas: são 16 mil novos casos anuais, que chegam a 20 mil se somados os não-curados do ano anterior. De 30% a 33% das mortes por tuberculose — a maior taxa de mortalidade do país — ocorrem na emergência dos hospitais terciários, o que revela a baixa eficácia da rede básica no diagnóstico e no tratamento da doença.
No bairro de Curicica, Zona Oeste do Rio de Janeiro, fica o Centro de Referência Hélio Fraga, transferido em abril à Fiocruz. Sua experiência de mais de 20 anos em pneumologia sanitária permitiu que, a partir de 1995, desenvolvesse protocolo clínico para validação de um tratamento das formas multirresistentes da tuberculose (TBMR) — quando o paciente não responde a remédios como rifampicina e isoniazida. O objetivo: dar resposta aos chamados casos crônicos da doença.
Seu Ambulatório de Tuberculose, que completou 10 anos em 2007, opera com equipes multidisciplinares no atendimento dos casos mais graves, enviados pela rede do SUS: já chegam a quatro mil os brasileiros atendidos. Além disso, presta consultoria em micobacterioses, pesquisa clínica e operacional, forma recursos humanos e promove vigilância epidemiológica dos casos de TBMR, incluindo gerenciamento e provisão dos medicamentos padronizados para todo o país.
Para a pneumologista Margareth Dalcolmo, fundadora e coordenadora técnica do ambulatório, a mudança para a Fiocruz favorecerá o desenvolvimento de trabalhos de referência, a participação em ensaios clínicos internacionais com novos fármacos, uma aproximação maior do serviço com a produção acadêmica — tudo para que o Brasil reaja mais velozmente às principais questões do programa de controle da tuberculose. “Considero inadmissível que ainda morram cerca de seis mil brasileiros por ano de tuberculose”, diz Margareth, que nesta entrevista à Radis faz balanço do estágio da doença no país, analisa os desafios para seu controle e enumera algumas recomendações úteis para os profissionais que lidam com pacientes de tuberculose.
“Não existe paciente difícil de ser tratado, como um fenômeno social isolado, existe serviço ineficiente”, afirma. Mas o desafio é grande, a começar pelo ensino da tuberculose, que é precário. “Há cursos médicos que em seis anos dão duas horas de tuberculose”. Profissionais do SUS e de universidades já fazem estágio no centro, que se prepara para treinar, neste ano, grupos da organização Médicos Sem Fronteiras de partida para regiões de conflito.
Por que há tantos casos de tuberculose no Rio de Janeiro?
É uma tendência histórica secular. O Rio foi o porto de entrada da tuberculose no Brasil com os primeiros jesuítas, no século 16, transmitida a uma população indefesa por razões provavelmente étnicas e imunológicas. Além disso, o Rio tem geografia muito particular, com riqueza e pobreza muito próximas numa faixa mínima de terra entre a montanha e o mar, onde sempre houve favela, uma população escrava maior, fora fatores recentes como imigração, exclusão social e deterioração da rede de serviços de saúde pública.
É uma tendência histórica secular. O Rio foi o porto de entrada da tuberculose no Brasil com os primeiros jesuítas, no século 16, transmitida a uma população indefesa por razões provavelmente étnicas e imunológicas. Além disso, o Rio tem geografia muito particular, com riqueza e pobreza muito próximas numa faixa mínima de terra entre a montanha e o mar, onde sempre houve favela, uma população escrava maior, fora fatores recentes como imigração, exclusão social e deterioração da rede de serviços de saúde pública.
A tendência continua alta?
Isso atravessou os séculos, chegou aos nossos dias e se agravou nas últimas décadas pela ineficiência do sistema de saúde, contrariando o ideário do SUS. O Rio é um exemplo clássico de negligência na administração dos serviços de saúde, embora, paradoxalmente, tenha concentrado o maior número de hospitais federais, por ter sido capital do país.
Isso atravessou os séculos, chegou aos nossos dias e se agravou nas últimas décadas pela ineficiência do sistema de saúde, contrariando o ideário do SUS. O Rio é um exemplo clássico de negligência na administração dos serviços de saúde, embora, paradoxalmente, tenha concentrado o maior número de hospitais federais, por ter sido capital do país.
Como está o atendimento no Rio em nossos dias?
Temos um paradoxo. Um SUS fantástico, o maior serviço de saúde pública do mundo, que dá cobertura virtualmente a 80% da população, responsável pela maior parte dos atendimentos nas doenças endêmicas ou de notificação compulsória — o caso da tuberculose. Ao mesmo tempo, as coisas são administradas de maneira ineficiente. Com a descentralização a partir da Lei 8.080/90, o que se viu no Rio foi uma desordem muito grande: temos disponibilidade de serviço nas redes terciária, secundária e primária, mas isso não funciona de maneira adequada. De 30% a 33% das mortes por tuberculose — a maior taxa do Brasil — ocorrem em hospitais de emergência. Isso quer dizer que as unidades previamente demandadas não foram capazes de detectar ou de acompanhar com a desejável resolubilidade os casos descobertos. É inadmissível que isso ocorra, mas é verdade: há vários trabalhos e teses que demonstram essa tendência.
Temos um paradoxo. Um SUS fantástico, o maior serviço de saúde pública do mundo, que dá cobertura virtualmente a 80% da população, responsável pela maior parte dos atendimentos nas doenças endêmicas ou de notificação compulsória — o caso da tuberculose. Ao mesmo tempo, as coisas são administradas de maneira ineficiente. Com a descentralização a partir da Lei 8.080/90, o que se viu no Rio foi uma desordem muito grande: temos disponibilidade de serviço nas redes terciária, secundária e primária, mas isso não funciona de maneira adequada. De 30% a 33% das mortes por tuberculose — a maior taxa do Brasil — ocorrem em hospitais de emergência. Isso quer dizer que as unidades previamente demandadas não foram capazes de detectar ou de acompanhar com a desejável resolubilidade os casos descobertos. É inadmissível que isso ocorra, mas é verdade: há vários trabalhos e teses que demonstram essa tendência.
E quanto à tuberculose multirresistente, já se tornou preocupação de saúde pública?
Sempre monitoramos a doença. Desde o advento da chamada “quimioterapia para a tuberculose”, no Pós-Guerra, o Brasil já participava de protocolos de teste de novos fármacos, justamente por reconhecer a importância epidemiológica da doença, e por haver uma inteligência, com pesquisadores qualificados. O Hospital Rafael de Paula Souza, que é a nossa retaguarda — hoje da rede municipal —, foi palco de vários testes. Em 1980, com a adoção do regime de tratamento de curta duração, o Brasil passou a monitorar de maneira mais sistemática as taxas de resistência aos fármacos. Como instituímos o regime de alta eficácia e sempre utilizamos a associação, na mesma cápsula, dos dois fármacos que são os carros-chefe do tratamento, rifampicina e isoniazida, de certa forma controlamos a propagação de uma resistência aos medicamentos.
Então, nossas taxas não são tão altas assim...
O Brasil nunca teve uma taxa de resistência considerada grave. Há exceções, hoje reconhecidas, em populações de pacientes albergados, presos ou em ambiente hospitalar. Na Argentina, nossa vizinha, a situação de multirresistência é catastrófica. Pesquisadores de Buenos Aires publicaram em 2000 a existência de uma cepa (cepa M, ou Muniz) que é resistente a praticamente todos os fármacos de primeira e segunda linhas. Isso é fruto de quê? Pode-se dizer que isso é fruto de má administração do tratamento, portanto um fenômeno iatrogênico.
Sempre monitoramos a doença. Desde o advento da chamada “quimioterapia para a tuberculose”, no Pós-Guerra, o Brasil já participava de protocolos de teste de novos fármacos, justamente por reconhecer a importância epidemiológica da doença, e por haver uma inteligência, com pesquisadores qualificados. O Hospital Rafael de Paula Souza, que é a nossa retaguarda — hoje da rede municipal —, foi palco de vários testes. Em 1980, com a adoção do regime de tratamento de curta duração, o Brasil passou a monitorar de maneira mais sistemática as taxas de resistência aos fármacos. Como instituímos o regime de alta eficácia e sempre utilizamos a associação, na mesma cápsula, dos dois fármacos que são os carros-chefe do tratamento, rifampicina e isoniazida, de certa forma controlamos a propagação de uma resistência aos medicamentos.
Então, nossas taxas não são tão altas assim...
O Brasil nunca teve uma taxa de resistência considerada grave. Há exceções, hoje reconhecidas, em populações de pacientes albergados, presos ou em ambiente hospitalar. Na Argentina, nossa vizinha, a situação de multirresistência é catastrófica. Pesquisadores de Buenos Aires publicaram em 2000 a existência de uma cepa (cepa M, ou Muniz) que é resistente a praticamente todos os fármacos de primeira e segunda linhas. Isso é fruto de quê? Pode-se dizer que isso é fruto de má administração do tratamento, portanto um fenômeno iatrogênico.
E o nosso caso?
Temos baixa ou média gravidade, de acordo com a OMS, o que se estima seja ratificado no segundo inquérito nacional de resistência, atualmente em desenvolvimento no país. Uma explicação é que os dois fármacos principais são fornecidos na mesma cápsula: se o paciente não toma um, não toma ambos, evitando com isso a resistência. E, como o tratamento sempre foi governamental no Brasil, não há o problema da medicina privada, como ocorre em muitos países de alta incidência de tuberculose. Um médico pode cuidar privadamente de um caso no Brasil, mas o doente, após ter seu caso notificado, vai à unidade de saúde buscar seu remédio. Não compra na farmácia, mesmo que possa fazê-lo. Nos outros países, o médico prescreve o que quiser, pelo tempo que quiser, e o doente compra o medicamento na farmácia, sem que se tenha controle. Não há controle da adesão ao tratamento, o que é um problema de maior complexidade no gerenciamento de um programa de tuberculose.
Então, o desafio maior do programa de controle da tuberculose é a adesão ao tratamento?
O desafio é fazer o paciente começar o tratamento, ser acompanhado adequadamente e ir até o fim de um tratamento que em geral dura seis meses. É acolher e acompanhar adequadamente o paciente, e sempre que possível supervisionar a tomada dos medicamentos, assegurar a adesão até o fim do tratamento que, se dura seis meses na tuberculose sensível, pode durar até 24 meses na multirresistente. Como o tratamento é extremamente eficaz, isso traz outro paradoxo: o doente melhora muito rápido. Se ele não for muito bem acompanhado, abandona. A multirresistência que verificamos no Brasil, até agora, é decorrente de maus tratamentos anteriores, e não de taxas de resistência primária, graves ou alarmantes, como se observa em outros países, como as antigas repúblicas soviéticas, Israel, Coréia do Sul, Irã, entre outros, onde as taxas de resistência primária estão acima de 10%.
Temos baixa ou média gravidade, de acordo com a OMS, o que se estima seja ratificado no segundo inquérito nacional de resistência, atualmente em desenvolvimento no país. Uma explicação é que os dois fármacos principais são fornecidos na mesma cápsula: se o paciente não toma um, não toma ambos, evitando com isso a resistência. E, como o tratamento sempre foi governamental no Brasil, não há o problema da medicina privada, como ocorre em muitos países de alta incidência de tuberculose. Um médico pode cuidar privadamente de um caso no Brasil, mas o doente, após ter seu caso notificado, vai à unidade de saúde buscar seu remédio. Não compra na farmácia, mesmo que possa fazê-lo. Nos outros países, o médico prescreve o que quiser, pelo tempo que quiser, e o doente compra o medicamento na farmácia, sem que se tenha controle. Não há controle da adesão ao tratamento, o que é um problema de maior complexidade no gerenciamento de um programa de tuberculose.
Então, o desafio maior do programa de controle da tuberculose é a adesão ao tratamento?
O desafio é fazer o paciente começar o tratamento, ser acompanhado adequadamente e ir até o fim de um tratamento que em geral dura seis meses. É acolher e acompanhar adequadamente o paciente, e sempre que possível supervisionar a tomada dos medicamentos, assegurar a adesão até o fim do tratamento que, se dura seis meses na tuberculose sensível, pode durar até 24 meses na multirresistente. Como o tratamento é extremamente eficaz, isso traz outro paradoxo: o doente melhora muito rápido. Se ele não for muito bem acompanhado, abandona. A multirresistência que verificamos no Brasil, até agora, é decorrente de maus tratamentos anteriores, e não de taxas de resistência primária, graves ou alarmantes, como se observa em outros países, como as antigas repúblicas soviéticas, Israel, Coréia do Sul, Irã, entre outros, onde as taxas de resistência primária estão acima de 10%.
Há um perfil socioeconômico do paciente?
Quanto menos informado, menor a possibilidade de adesão ao tratamento. Quanto mais informado, maior a probabilidade de entendimento do processo saúde-doença, portanto, maior compreensão de que o tratamento é longo, porém de alta eficácia.
Quanto menos informado, menor a possibilidade de adesão ao tratamento. Quanto mais informado, maior a probabilidade de entendimento do processo saúde-doença, portanto, maior compreensão de que o tratamento é longo, porém de alta eficácia.
Qual o paciente mais difícil de tratar?
Tenho uma particular avaliação do problema: acho que não existe só o mau paciente; existe o serviço ineficiente. A tuberculose é uma doença altamente relacionada a outras co-morbidades, como o uso de droga, que gera o mais complexo grupo a ser tratado: a desinserção social o impede de aderir ao tratamento. Ele toma outras drogas, tem dificuldades em comparecer. Mas há uma situação curiosa: se é o caso de uma tuberculose sensível, o tratamento dura seis meses; se é um caso multirresistente, o regime dura entre 18 e 24 meses. Como manter este doente aderido ao tratamento, tomando injeção durante um ano, se ele não for muito bem cuidado e tratado? Em primeiro lugar, não adianta ter só médico e laboratório disponíveis. É preciso uma equipe multidisciplinar, permanentemente qualificada e estimulada, que acolha esse paciente como pessoa e lhe assegure confiança. Aí entra também o papel institucional na provisão de incentivos aos pacientes, como transporte e suplementação alimentar.
Tenho uma particular avaliação do problema: acho que não existe só o mau paciente; existe o serviço ineficiente. A tuberculose é uma doença altamente relacionada a outras co-morbidades, como o uso de droga, que gera o mais complexo grupo a ser tratado: a desinserção social o impede de aderir ao tratamento. Ele toma outras drogas, tem dificuldades em comparecer. Mas há uma situação curiosa: se é o caso de uma tuberculose sensível, o tratamento dura seis meses; se é um caso multirresistente, o regime dura entre 18 e 24 meses. Como manter este doente aderido ao tratamento, tomando injeção durante um ano, se ele não for muito bem cuidado e tratado? Em primeiro lugar, não adianta ter só médico e laboratório disponíveis. É preciso uma equipe multidisciplinar, permanentemente qualificada e estimulada, que acolha esse paciente como pessoa e lhe assegure confiança. Aí entra também o papel institucional na provisão de incentivos aos pacientes, como transporte e suplementação alimentar.
O abandono então é uma das principais causas da tuberculose multirresistente?
Sem dúvida nenhuma, embora a irregularidade no uso das medicações seja mais grave do que o abandono. Um doente que abandona no segundo mês dificilmente ficará resistente, porque usou os fármacos de maneira adequada — até que se prove o contrário. Porém, dois meses é um período muito curto, que não é capaz de negativá-lo bacteriologicamente, portanto, não será capaz de curá-lo. Mas esse doente é menos grave do que aquele que toma o remédio dois dias e pára quatro. A irregularidade nessa relação entre patógeno e fármaco é que faz com que se desenvolva a resistência.
Sem dúvida nenhuma, embora a irregularidade no uso das medicações seja mais grave do que o abandono. Um doente que abandona no segundo mês dificilmente ficará resistente, porque usou os fármacos de maneira adequada — até que se prove o contrário. Porém, dois meses é um período muito curto, que não é capaz de negativá-lo bacteriologicamente, portanto, não será capaz de curá-lo. Mas esse doente é menos grave do que aquele que toma o remédio dois dias e pára quatro. A irregularidade nessa relação entre patógeno e fármaco é que faz com que se desenvolva a resistência.
Existe uma relação entre o processo de favelização nas principais capitais do país e a tuberculose multirresistente?
Não acho que guarde uma relação diferente da tuberculose de um modo geral, até porque, para nós, ela é um microuniverso. No Rio de Janeiro há 16 mil casos novos de tuberculose por ano, dos quais aproximadamente 250 se tornam multirresistente. A questão é que a maioria desses pacientes vêm de comunidades muito pobres. Na Rocinha, por exemplo, vivem 80 mil pessoas [a Light calcula 120 mil, e a associação de moradores, 200 mil]. A taxa de incidência média de tuberculose no Brasil é de 47 por 100 mil; no Rio, é de 96 por 100 mil; na Rocinha, é acima de 300 por 100 mil. Seria reducionista, porém, relacionar os dois fenômenos. A questão maior está na exclusão social e na falta de acesso aos serviços.
Não acho que guarde uma relação diferente da tuberculose de um modo geral, até porque, para nós, ela é um microuniverso. No Rio de Janeiro há 16 mil casos novos de tuberculose por ano, dos quais aproximadamente 250 se tornam multirresistente. A questão é que a maioria desses pacientes vêm de comunidades muito pobres. Na Rocinha, por exemplo, vivem 80 mil pessoas [a Light calcula 120 mil, e a associação de moradores, 200 mil]. A taxa de incidência média de tuberculose no Brasil é de 47 por 100 mil; no Rio, é de 96 por 100 mil; na Rocinha, é acima de 300 por 100 mil. Seria reducionista, porém, relacionar os dois fenômenos. A questão maior está na exclusão social e na falta de acesso aos serviços.
O que causa tanta contaminação nesse ambiente?
São doentes virgens de tratamento, provavelmente um ou dois contaminados na própria casa, ou no mesmo beco, estando a janela do vizinho quase ao alcance da mão. Estudos de epidemiologia molecular revelaram a presença do mesmo clone da micobactéria em vários pacientes. A questão demográfica se reflete nessa exposição quase compulsória. A transmissão está propiciada pelas condições de habitação, o grau de intimidade do contato — quanto mais íntimo, maior o risco — e as condições pessoais. Se ele é soropositivo para o HIV, tem risco cerca de 10 vezes maior de adoecer; se é diabético insulino-dependente, é considerado de alto risco; se é usuário de medicamentos — corticóides, quimioterapia para o câncer —, também; se é usuário de drogas, está no maior risco de todos, conforme estudos já demonstraram, quer pela impossibilidade de aderir ao tratamento racionalmente, quer pela deterioração imunológica gerada pelo uso das drogas.
São doentes virgens de tratamento, provavelmente um ou dois contaminados na própria casa, ou no mesmo beco, estando a janela do vizinho quase ao alcance da mão. Estudos de epidemiologia molecular revelaram a presença do mesmo clone da micobactéria em vários pacientes. A questão demográfica se reflete nessa exposição quase compulsória. A transmissão está propiciada pelas condições de habitação, o grau de intimidade do contato — quanto mais íntimo, maior o risco — e as condições pessoais. Se ele é soropositivo para o HIV, tem risco cerca de 10 vezes maior de adoecer; se é diabético insulino-dependente, é considerado de alto risco; se é usuário de medicamentos — corticóides, quimioterapia para o câncer —, também; se é usuário de drogas, está no maior risco de todos, conforme estudos já demonstraram, quer pela impossibilidade de aderir ao tratamento racionalmente, quer pela deterioração imunológica gerada pelo uso das drogas.
Diz-se que os laboratórios farmacêuticos não investem em remédios contra a tuberculose por considerá-la doença de pobre. Isso é verdade?
Durante muito tempo isso foi verdade, não é mais. Nunca houve um momento na história da doença, nas últimas seis décadas — considerando-se que a estreptomicina foi o primeiro medicamento, descoberto em 1945 —, em que houvesse sete fármacos diferentes em investigação para a tuberculose, inclusive com a participação da grande indústria. A tuberculose foi declarada emergência mundial pela OMS em 1993. Isso foi ratificado em 2005. Uma doença que mata quase três milhões por ano no mundo e faz vítimas entre 20 e 30 anos não pode ser negligenciada. Hoje há uma instituição supranacional — a Aliança Global para o Desenvolvimento de Fármacos contra a Tuberculose — que monitora ensaios clínicos, pré-clínicos em modelo animal e humano, para testagem de fármacos.
Durante muito tempo isso foi verdade, não é mais. Nunca houve um momento na história da doença, nas últimas seis décadas — considerando-se que a estreptomicina foi o primeiro medicamento, descoberto em 1945 —, em que houvesse sete fármacos diferentes em investigação para a tuberculose, inclusive com a participação da grande indústria. A tuberculose foi declarada emergência mundial pela OMS em 1993. Isso foi ratificado em 2005. Uma doença que mata quase três milhões por ano no mundo e faz vítimas entre 20 e 30 anos não pode ser negligenciada. Hoje há uma instituição supranacional — a Aliança Global para o Desenvolvimento de Fármacos contra a Tuberculose — que monitora ensaios clínicos, pré-clínicos em modelo animal e humano, para testagem de fármacos.
Como deve agir o profissional de saúde que trabalha no controle da tuberculose?
Em primeiro lugar, é preciso que o profissional trabalhe com estímulo, condições e ambiente adequados e que reconheça quem é seu paciente. Saber de onde vem, conhecer o núcleo familiar, o ambiente onde se contaminou, se há outros casos na família, que muitas vezes está excluída da seguridade social. Isso é localizá-lo socialmente. É importante saber que direitos tem, orientá-lo, acolhê-lho, fazer com que seja avaliado em consulta que inclua serviço social. Não acreditamos em tratamento de tuberculose restrito ao trabalho médico. É freqüente em determinados postos de saúde encontrar uma fila de pacientes debaixo de sol ou chuva, com um médico que, para cumprir critérios de produtividade, é obrigado a atender 30 doentes num turno. Assim, não há doente que se trate seis meses. Então, acolhimento, humanização, eficiência, farmácia adequada, laboratório eficiente, tudo isso dá confiança e faz com que o paciente adira não apenas ao tratamento, mas ao próprio cuidado que recebe. O nosso ambulatório é um bom exemplo: tratamos de tuberculose multirresistente ou de casos muito complexos e temos taxa de abandono muito menor do que a dos casos sensíveis no Rio de Janeiro.
Em primeiro lugar, é preciso que o profissional trabalhe com estímulo, condições e ambiente adequados e que reconheça quem é seu paciente. Saber de onde vem, conhecer o núcleo familiar, o ambiente onde se contaminou, se há outros casos na família, que muitas vezes está excluída da seguridade social. Isso é localizá-lo socialmente. É importante saber que direitos tem, orientá-lo, acolhê-lho, fazer com que seja avaliado em consulta que inclua serviço social. Não acreditamos em tratamento de tuberculose restrito ao trabalho médico. É freqüente em determinados postos de saúde encontrar uma fila de pacientes debaixo de sol ou chuva, com um médico que, para cumprir critérios de produtividade, é obrigado a atender 30 doentes num turno. Assim, não há doente que se trate seis meses. Então, acolhimento, humanização, eficiência, farmácia adequada, laboratório eficiente, tudo isso dá confiança e faz com que o paciente adira não apenas ao tratamento, mas ao próprio cuidado que recebe. O nosso ambulatório é um bom exemplo: tratamos de tuberculose multirresistente ou de casos muito complexos e temos taxa de abandono muito menor do que a dos casos sensíveis no Rio de Janeiro.
O centro já tem algum caso da nova tuberculose, a XDR?
Pela definição da OMS de XDR-TB — tuberculose extensivamente multirresistente, não só à rifampicina e à isoniazida, mas aos fármacos de primeira e segunda linhas e mais um derivado quinolona e aminoglicosídeo —, uma revisão retrospectiva do nosso banco de dados detectou seis casos. Imaginamos que haja outros no Brasil, porque para ter certeza seria necessário que todos fossem testados de maneira uniforme. Isso ainda não é feito, e esperamos que seja a partir da próxima revisão de normas para a tuberculose.è
Pela definição da OMS de XDR-TB — tuberculose extensivamente multirresistente, não só à rifampicina e à isoniazida, mas aos fármacos de primeira e segunda linhas e mais um derivado quinolona e aminoglicosídeo —, uma revisão retrospectiva do nosso banco de dados detectou seis casos. Imaginamos que haja outros no Brasil, porque para ter certeza seria necessário que todos fossem testados de maneira uniforme. Isso ainda não é feito, e esperamos que seja a partir da próxima revisão de normas para a tuberculose.è
Tuberculose em pauta
NA RADIS• “Saúde pública e comunicação”, nº 68, abr/2000• “A cura está nas políticas públicas”, nº 48, ago/2006• “Combate à tuberculose, enfim, vira prioridade”, nº 21, mai/2004• “De ‘doença romântica’ a mal social”, nº 12, ago/2003
Na Coletânea RADIS 20 anos
NA DADOS• “Tuberculose”, nº 18, mai/1996
NA TEMA• “Tuberculose”, nº 3, ago/1983 n
NA RADIS• “Saúde pública e comunicação”, nº 68, abr/2000• “A cura está nas políticas públicas”, nº 48, ago/2006• “Combate à tuberculose, enfim, vira prioridade”, nº 21, mai/2004• “De ‘doença romântica’ a mal social”, nº 12, ago/2003
Na Coletânea RADIS 20 anos
NA DADOS• “Tuberculose”, nº 18, mai/1996
NA TEMA• “Tuberculose”, nº 3, ago/1983 n
CRÉDITO RADIS N. 69 - MAIO DE 2008
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