A escalada das doenças sexualmente transmissíveis
O calor faz arder o desejo e derrete a prudência. No verão, o número de pessoas infectadas por DSTs aumenta, e entre as mulheres, mesmo em relações estáveis, o problema é cada vez mais grave
Era para ser apenas uma visita de rotina ao ginecologista. Mas um susto aguardava a empresária Flávia, 30 anos: havia con traído o HPV, o vírus papiloma humano, associado ao câncer de colo do útero – quarta causa de morte por câncer em mulheres no Brasil. “Tive uma relação tão rápida e avassaladora com um parceiro comercial que aceitei transar sem camisinha”, conta ela. Após seguir à risca o tratamento para neutralizar o vírus, jura que sexo inseguro nunca mais. O fato, porém, é que todo ano, especialmente no verão, milhares de brasileiras contraem doenças sexualmente transmissíveis (DSTs). Uma história embalada a sol, calor, corpos à mostra, muitos homens sozinhos enquanto as esposas estão em férias com as crianças, mais as loucuras do Carnaval.
Uma pesquisa do Ministério da Saúde sobre o comportamento sexual da população urbana de 16 a 65 anos concluiu, em 2005, que a adesão ao sexo seguro ainda é baixa no país, sobretudo entre as mulheres. Em relações eventuais, 69,8% dos homens usam regularmente camisinha contra 49,1% das mulheres. Na faixa etária mais jovem, entre 16 e 19 anos, a diferença entre os sexos é ainda maior: 86% dos rapazes recorrem ao preservativo e apenas 42,1% das garotas. “A mulher entra na relação confiando no parceiro, por isso não se protege”, observa a médica Mariângela Simão, diretora do Programa Nacional de DST/Aids. “Ela não sente que está correndo risco e fica vulnerável ao perigo.”
Um dos maiores dramas se dá com as mulheres em relações estáveis. Apenas 17,8% delas usam o preservativo (entre os homens o número é igualmente baixo, 18,6%) por acreditar no pacto de fidelidade com o parceiro. A conseqüência, porém, é a feminização de doenças como a aids. Na faixa entre 13 e 19 anos, já ocorreu uma inversão na incidência da contaminação por HIV: há 13 garotas portadoras do vírus para cada dez rapazes.
As campanhas que incentivam o uso do preservativo alertam para esses riscos. A mulher, porém, continua a não se proteger. “Ela está sujeita a uma cultura de submissão”, analisa a orientadora sexual Lena Vilela, diretora do Instituto Kaplan, em São Paulo. “Há o medo de sofrer rejeição e arriscar o relacionamento; o receio do julgamento moral, ou seja, de ser considerada promíscua por ter camisinha na bolsa; e a falta de coragem para negar o sexo na hora H se o parceiro não concordar com o uso, o que faz com que ela nem sequer proponha o preservativo.” A orientadora sexual afirma que há três tipos de motivação: a biológica, ligada à sobrevivência da espécie (comer, dormir e fazer sexo); a do prazer, associada à tendência a repetir situações prazerosas guardadas na memória; e a intelectual, relacionada aos conhecimentos adquiridos. “A prevenção entra nesse terceiro nível. Logo, os argumentos têm que ser fortes para desbancar as outras duas motivações envolvidas no sexo”, explica. “Isso nem sempre é fácil porque, pela nossa cultura, quem ama confia. Se exigir o uso da camisinha indica que ela não confia no outro ou não é digna de confiança, ela prefere correr o risco.”
E que risco. Além dos danos ao organismo feminino, as DSTs em geral são uma ameaça ao feto se acometerem gestantes e aumentam o risco de infecção pelo vírus da aids. Detalhe: muitas não provocam corrimento, coceira, ardor nem qualquer outro sintoma na mulher. Ou seja, ela pode estar contaminada e não perceber.
A maioria das DSTs é curável e não deixa seqüelas quando o tratamento é bem feito. As complicações de correm da não-utilização do remédio adequado, na dose ideal e pelo tempo certo (o que permite que o microorganismo desenvolva resistência ao remédio) ou do não-tratamento do parceiro, o que gera a reinfecção. Alguns fatores aumentam a vulnerabilidade feminina às DSTs:
INÍCIO PRECOCE DA ATIVIDADE SEXUAL “Na adolescência, o colo uterino é imaturo, o que facilita o ataque e a persistência da infecção”, esclarece a ginecologista Cecilia Roteli Martins, de São Paulo.
MAIOR NÚMERO DE PARCEIROS Não por razões moralistas, mas por elevar o risco de contato com algum vírus ou bactéria, explica Mariângela Simão.
PARCEIRO QUE MANTÉM RELAÇÕES COM MÚLTIPLAS PARCEIRAS. Também porque aumenta as probabilidades de se deparar com agentes agressores.
BAIXA IMUNIDADE Quanto mais ativo estiver o sistema de defesa interno, mais condições terá de neutralizar esses agentes.
FUMO Além dos danos car diovas culares, fumar prejudica o fluxo de sangue para os genitais e favorece alterações nas células que predispõem ao câncer.
BAIXO NÍVEL EDUCACIONAL O uso de preservativo cai ainda mais nas populações pouco instruídas.
Inimigos íntimos
Aids
Não tem cura; pode apenas ser controlada por um coquetel de medicamentos. Do primeiro registro, em 1980, até junho de 2006, foram identificados 433 mil casos no país. A cada minuto, 55 mulheres da América Latina e do Caribe são contaminadas com o HIV e podem transmiti-lo aos filhos na gestação, parto e amamentação. O vírus destrói o sistema imunológico, favorecendo a instalação de doenças oportunistas potencialmente letais. Os sintomas podem levar anos para aparecer: suores noturnos, emagrecimento exagerado, cansaço profundo, diarréia prolongada, manchas vermelhas na pele e febre persistente.
Hepatite B
Como a aids, pode ser contraída por transfusão de sangue, agulhas e objetos cortantes, como o alicate de unha, ou ser transmitida pela mãe, na gravidez e parto. Só que é 20 vezes mais contagiosa e mata quatro vezes mais. O vírus HBV provoca inflamação no fígado, que se torna crônica em 5 a 10% dos casos e pode evoluir para cirrose ou câncer. Medicamentos (interferon) mantêm o vírus inativo, mas o melhor é prevenir o contágio por meio da vacina disponível no serviço público (até os 19 anos) e nas clínicas particulares de imunização.
Herpes genital
Também não tem cura e pode ser transmitido ao feto no parto. Doença causada pelo vírus herpes simples, produz dolorosas vesículas (bolhas cheias de líquido), que se rompem formando feridas nos genitais. Dias depois, elas somem sem deixar vestígio, mas o vírus fica alojado no corpo e volta a atacar sempre que há queda na resistência orgânica. Medicamentos de uso oral e local à base de aciclovir e derivados inibem a replicação do vírus e abreviam a duração da crise. Cientistas pesquisam vacinas para prevenir o contágio, mas os resultados ainda estão aquém do esperado.
Sífilis
Causada pela bactéria Treponema pallidum, primeiro ocasiona feridas, que desaparecem espontaneamente; depois, mal-estar e febre. É uma doença perigosa porque daí pode evoluir em silêncio até acarretar danos mentais, paralisia e morte, explica a médica Mariângela Simão. O feto, contaminado durante a gravidez, é mais vulnerável a esses danos. Embora o teste de sífilis (assim como o do HIV) seja obrigatório no pré-natal para impedir a transmissão de mãe para filho, apenas 69% das gestantes foram testadas em 2004.
Gonorréia e clamídia
Até 40% das pacientes desenvolvem doença inflamatória pélvica, que pode obstruir as trompas e conduzir à esterilidade. Nas demais, aumenta até dez vezes o risco de gravidez tubária, causa de morte materna. A gonorréia resulta do ataque da bactéria Neisseria gonorrhoeae, que produz dor ou queimação ao urinar e secreção, sintomas que podem passar despercebidos. A Chlamydia trachomati costuma atacar em silêncio. Às vezes, acarreta corrimento de cor amarela e cheiro forte, coceira e ardor nos genitais. As duas bactérias são combatidas com antibióticos de uso oral.
Tricomoníase e gardenerose
O parasita unicelular causador da tricomoníase, Trichomonas vaginalis, se caracteriza por produzir secreção amarelo-esverdeada, malcheirosa e espumosa, dor ao urinar e na relação sexual. Há tratamento com medicamento de uso oral. A gardenerose é causada pela bactéria Gardenerella vaginalis e ocasiona queda na resistência local, aumentando o risco de outras infecções. Os sintomas, como corrimento acinzentado, pouco abundante e de odor não muito forte, nem sempre estão presentes.
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